Fazenda doada por Gilberto Gil ao MST segue sem assentados após dez anos
CLAUDIO LEAL
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Mais de uma década depois, uma fazenda doada pelo
compositor Gilberto Gil ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra),
na zona rural de Cravolândia (BA), a 300 km de Salvador, segue quase esquecida
e sem moradores fixos.
História pouco conhecida, o sonho da pequena
reforma agrária se iniciou em 2003. Simpatizante do MST, o então ministro da
Cultura de Lula resolveu entregá-la aos sem-terra, na expectativa de um
renascimento da propriedade.
Na década de 1980, uma fazenda no vale do Jiquiriçá
renovaria essa ligação espiritual. Em 1977, o designer deixou Brasília e voltou
a morar na Bahia com a mulher, Telma, convertendo-se à vida de fazendeiro. Num
depoimento de outubro de 1997, disponível no site do músico, Duarte lembrou de
"um sufoco financeiro total e absoluto".
Em turnê pelo interior
baiano, Gil quis ajudá-lo, comprando metade da fazenda.A experiência campesina de Gil deve-se à amizade
com o designer Rogério Duarte (1939-2016), do grupo da Tropicália.
Unidos na
viagem tropicalista, Duarte criou para Gil mais capas de discos do que para
qualquer outro amigo. São dele os projetos visuais de "Gilberto Gil"
(1968), "Gilberto Gil" (1969), "Gilberto Gil ao Vivo"
(1974) e "Gil Jorge Ogum Xangô" (1975), além da marca de
"Refazenda" (1975). Compadres, eles fizeram juntos as músicas "A
Última Valsa" e "Objeto Semi-identificado".
Passados alguns anos, o designer vendeu a
propriedade para investir em outras duas de tamanho menor. "Eu resolvi
vender a fazenda sem sequer lhe consultar", relembrou no diálogo com Gil.
Nessa fase, o amigo teria direito a uma fatia proporcional ao investimento. Em
2003, Gil avisou que doaria a parte que lhe cabia ao MST.
A fazenda fica em região próxima à Palestina, um
antigo latifúndio exportador de café que se transformou num assentamento de 4,3
mil hectares, onde vivem 180 famílias desde 1999, de acordo com o Incra
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Os frequentadores de um
bar do vilarejo ainda chamam a propriedade da vizinhança, doada ao MST, como
"a fazenda de Gilberto Gil", a 30 minutos de carro do centro da
cidade.
Quilômetros adiante, o pequeno agricultor
Florisvaldo Sena dos Santos, 32, aceitou guiar a reportagem até o local. Em
novembro de 2015, Duarte também indicou onde ficava a terra de até 70 hectares.
"Largaram mão e o capim tomou conta. Tem carrapato de matar com o
pau."
Dias antes, afetada pela chuva, a estrada de barro
estava enlameada. Em 19 de agosto, restavam poças ao longo do trajeto. O carro
não avançou por todo o caminho estreito. A alternativa foi andar numa trilha,
descer e subir morros verdejantes, e enfim avistar uma casinha de barro, bem
descascada, e a porteira embaixo de uma colina com a mata. Não havia cuidadores
naquela tarde.
"Antigamente era café, laranja, manga, muita
fruta que tinha aqui. Jaqueira, gado... Hoje, está tudo largado", disse
Florisvaldo, num cenário talvez propício à Refazenda descrita na canção de Gil.
Na propriedade ao lado, o trabalhador rural Gércio Cerqueira dos Santos, 35,
afirmou que somente um homem costuma aparecer na terra vizinha, duas vezes por
semana.
Líderes do MST na Bahia, Márcio Matos e o
representante estadual da direção do movimento, Evanildo Costa, evitaram falar
com a reportagem, depois do primeiro contato telefônico. O deputado federal
Valmir Assunção (PT), político formado no MST que acompanhou a conversa para a
doação, não respondeu ao pedido de entrevista.
Em mensagem por e-mail, o MST baiano admite a
inércia: "De acordo com a direção do MST no Estado, a área doada por
Gilberto Gil não comporta um assentamento de reforma agrária, as informações
que temos apontam que o sítio possui entre 40 a 70 hectares. Esse processo pode
ser confirmado com o Incra, órgão responsável pelo processo de desapropriação.
Além disso, existem diversas dificuldades de acesso, tendo em vista que
historicamente não houve investimentos em infraestrutura".
"O MST até então, por conta destas questões e
das demandas emergenciais do dia a dia, até o exato momento, não fez um
investimento maior na propriedade, não havendo moradores fixos na
localidade", relata.
A superintendência do Incra no Estado informa que
Gilberto Gil "pode fazer doações de áreas rurais a associações de
agricultores e pessoas físicas, mas ao Incra não há nenhum processo em
questão".
E detalha: uma área de 70 hectares, em Cravolândia, é
considerada "uma pequena propriedade" (na cidade, cada módulo fiscal
possui 35 hectares). A legislação do Incra "determina que a criação de
assentamentos só seja realizada para assentar, no mínimo, 15 famílias".
A Folha apurou que nenhuma das atuais restrições
foi manifestada pelo MST a Gil, na época da entrega. Nos últimos anos, o
compositor sentia-se curioso pelas consequências do gesto.
A reportagem pretendia contar o destino dos
possíveis beneficiados pelo presente do artista. E descobriu que, até agora,
não há assentados. Em tratamento de saúde por insuficiência renal, Gil não vai
se manifestar, mas soube da apuração da história. Fotos do lugar foram enviadas
para sua mulher, Flora, e para a assessoria dos sem-terra.
Na sede do MST, em Salvador, a integrante da
secretaria estadual, Edineia Santana, justificou a ausência de ações: "Nos
últimos dez anos, vieram outras prioridades. Como é uma terra conquistada, o
processo precisa ser retomado". Apesar da promessa, não foi apresentada a
documentação com os dados da propriedade rural. O MST pensa na ideia de uma
"área experimental" de agricultura.
"Muita gente quer terra, e esta aí fica sem
ninguém. A fazenda tem o mais importante: água", ressaltou o agricultor
Florisvaldo, que conhece pouco a obra de Gilberto Gil e não rejeitaria um
pedaço do paraíso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário